
Onde não há plateia nem troféus é que se mede a verdadeira grandeza de um bailarino. Ética, empatia e humildade, ignoradas em meio à pressão e rivalidade, são qualidades indispensáveis para brilhar de verdade, dentro e fora do palco.
Matéria de Eduarda De Nadai Generato
Isabella Gasparini, Foto: Andrej Unspenski
Na dança, os olhos do público costumam se prender aos giros perfeitos, às linhas elegantes, e a técnica dos movimentos no palco. Mas há algo que não dá pra ensaiar, não se aprende na sala de aula, e que define a grandeza e valiosidade de um bailarino: seu caráter. Fora dos holofotes, é nos bastidores e relações cotidianas que são reveladas atitudes que realmente sustentam seu sucesso: A humildade no processo, o respeito pelos colegas e a ética na convivência.
O olhar dos jurados e o silêncio dos valores
No Brasil, onde esse esporte artístico ainda luta por reconhecimento e valorização no espaço profissional, discutir esses valores se torna urgente. Existem (ao redor do país) grandes festivais, seletivas e competições, tais como Passo de Arte, Vida ao Corpo e Festival de Dança de Joinville, que premiam, selecionam e dão oportunidades para bailarinos e artistas talentosos. O festival YAGP Brasil (Youth American Grand Prix) é o queridinho quando o assunto é bolsas de estudos, oportunidades e carreira internacional. Acontece anualmente e, se os bailarinos se saírem bem, eles passam para a final em Nova York.
Acontece que – não só nesses festivais e competições, mas também em apresentações e espetáculos – os jurados e olheiros avaliam e buscam por técnica, o corpo físico perfeito e a presença de palco. Desse jeito, esquecemos que a arte também é feita daquilo que não se vê: a escuta, o cuidado e a humanidade fora de cena.
Diretora do Ballet Márcia Lago e ex bailarina, a profissional Márcia Lago comenta que o júri se baseia no que eles estão vendo somente no palco, que não passa disso: “É como se eles vissem uma foto. Eles não veem um filme. A foto é uma coisa momentânea. É algo que você olha e vê se te agrada ou não. Se te agradou, você fala assim ‘ah, legal, gostaria de dar uma oportunidade para essa pessoa’”.
Talvez seja hora de olhar além do palco e refletir sobre que tipo de artista que estamos formando e a quem a dança está dando voz.
Só a habilidade técnica importa?
Priscila Azzini, bailarina, professora de dança e coreógrafa formada em educação física e teatro, diz que além da habilidade técnica de um artista, ela valoriza o brilho no olho. A vontade de aprender e o interesse pelo que está fazendo são elementos notáveis para qualquer professor. Além disso, aponta que a constância do trabalho duro e da disciplina são essenciais para a construção de um ótimo bailarino, e que o sucesso no palco é apenas a consequência: “Claro, existe o talento né, existe o dom, existe uns que tem mais a parte artística, que tem a musicalidade e o físico mais fortes. Mas ter amor pelo que ele faz, ele sentir, você sentir que ele ama estar ali, é muito importante”.
Em outras palavras, o que forma verdadeiramente um artista da dança para Priscila é o carinho pela rotina e a persistência: “É isso que forma um bailarino, esse amor pela sala de aula. Porque gostar de se apresentar, gostar de fazer um bom personagem, todos gostam. Mas gostar ali do dia-a-dia, de gostar de fazer aula, sabe? Também vale”, e completa dizendo que é sobre ter a humildade de ouvir quem está te corrigindo e te observando.
Márcia aponta que a habilidade vem em terceiro lugar, com a ética e o emocional logo antes: “O caráter da pessoa, a maneira como ela conduz as coisas, a honestidade dela em relação ao trabalho e como ela se propõe, é o mais importante”.
O abismo entre talento no palco e personalidade
A diretora da instituição, com anos de experiência nesse mundo do ballet, passa a mensagem de que estar fora do palco não é tão distante de estar dentro dele, quando se trata de ações e jeito de ser: “Eu acho que se a pessoa tem um bom caráter, se ela tem humildade, se ela tem coisas boas pra passar, ela vai passar isso em cena. Se ela não tem essa gama de coisas boas dentro do coração, dentro da cabeça, ela não consegue passar emoção… Aí fica uma coisa fingida”
Não apenas no Brasil, muito se vê que bailarinas e artistas em geral apresentam diferenças no sucesso dentro do palco e fora dele. Ou seja, a performance técnica, as piruetas e os braços estão perfeitos, enquanto o carisma, a empatia e o respeito pelos colegas deixam a desejar na coxia e camarins. Então, surge a reflexão: precisa mesmo ter uma boa personalidade para fazer sucesso na frente da plateia?
Isabella Gasparini, bailarina profissional e primeira solista do Royal Ballet em Londres tenta responder à reflexão: “Sempre dá para você perceber o caráter do artista quando ele está no palco”. Bel diz que pessoas que estão focadas apenas em reconhecimento ou o pé perfeito não chamam tanto sua atenção quanto aquelas que fazem para se sentir bem de verdade. “Os que me tocam realmente são aqueles que são honestos, humildes sempre, sabe? Do que alguém que está forçando alguma coisa ou está tentando aparecer. Que está pensando no próprio ego e não no que ela está doando para a plateia de verdade”.
Priscila, em concordância com Márcia, aborda essa questão dizendo que a personalidade e caráter de um dançarino afeta direta e intensamente a sua performance no palco. “Eu acho que a alma, o que tem dentro da gente, no palco aumenta mil vezes. A pessoa pode estar no meio do foco, se ela não tiver luz, não dá certo de verdade. Porque a luz, ela vem disso, ela vem da ética da pessoa, vem da bondade, é daí que vem”, comentou ao se emocionar.
Já Isabella apresentou um olhar mais acadêmico para falar sobre o comportamento artístico fora do palco, exemplificando com um dançarino convidado para 3 apresentações no Royal Ballet e suas atitudes nas aulas e ensaios: “Eu fiquei apaixonada pela maneira como ele trabalhava na aula. Antes da aula ele fazia aquecimento, ele praticamente fazia uma barra. Eu admiro muito essa dedicação, respeito. A pessoa pergunta se pode entrar na barra do seu lado, sabe?”, admira a profissional. “Às vezes, entra alguém que não conhece, que não sabe. E essas pessoas, em vez de serem receptivas e darem espaço à ela, ficam olhando de cara feia”. Ao resumir seu raciocínio, ela adiciona: “Eu acho que tudo que a gente faz fora do palco vai se refletir na hora da gente dançar, entendeu? Mas se você é uma pessoa “nojenta” que ninguém gosta, a energia muda. Você não vai sentir aquele calor da pessoa. Aquele suporte. Eu acho que afeta muito uma coisa assim”.
O lado obscuro da dança que não chega aos olhos do público
Há quem diga que o mundo da dança é competitivo, seletivo e, por vezes, cruel. Em uma seletiva importante, por exemplo, é raro encontrar um dançarino que te lançará um olhar amigável, até porque você é visto por ele como concorrente, e alguém que pode tomar sua vaga.
Ao contar do seu caminho profissional até chegar no Royal Ballet em Londres, Isabella comenta: “A rivalidade existe em todos os lugares. E falsidade também”. A bailarina comenta que no backstage de uma apresentação, a vibe é de fazer um espetáculo lindo e harmônico. O problema estaria nas aulas e ensaios.
Ao falar sobre ballet clássico, Priscila aborda as dificuldades que todo bailarino enfrenta: a padronização do corpo e sua rigorosidade, mesmo que você tenha o lado artístico perfeito. “Se a bailarina sobe no palco pensando nisso e a mente dela não estiver preparada, aquilo engole ela. Ela trava”. Além disso, Priscila aborda que muitos dançarinos conseguem oportunidades únicas de maneira suja, e relata a vez em que colegas a repudiaram em uma seletiva, e comentou que se não lembrasse do seu propósito ali, ela teria desistido. “Todas as pessoas que estão próximas, que estão junto com você, querem que você quebre a perna na próxima pirueta. Infelizmente, é uma realidade. Todos lutaram muito por aquilo e alguns não levam a competitividade de maneira saudável, levam pra um lado ruim”.
Márcia Lago explora seus valores em relação a como enfrentar essa rivalidade: “Você tem que sempre manter em mente que você quer tirar o seu melhor e não provar pra ninguém que você é a melhor. Tem que ser para você e por você. Sem tentar ficar preocupada com o que as pessoas estão achando” e completa dizendo que a arte é subjetiva quando se trata de julgamentos, gosto é algo pessoal, e às vezes pode ser difícil mesmo uma bailarina agradar um jurado.
Para finalizar, Márcia comenta um pouco da comparação baseada na sua própria experiência: “Eu acho que a gente não precisa ficar olhando pro lado ou prestando atenção nos outros para poder avançar. A comparação não é saudável”.
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